

Mas mais do que ser um divisor de águas no tocante a arte dos quadrinhos, também é importante lembrar que foi o período de Ditko à frente do título que definiu aquilo que seria o o universo visual do Dr.Estranho pelos anos que viriam - algo, por exemplo que não viriam a acontecer com o Homem-Aranha, por exemplo, apesar de seus designs de personagens serem ainda mantidos por um bom tempo.
Acompanhando a arte "viajadona", o texto de Lee -e também do próprio Ditko - criou aquilo que seria o verdadeiro divisor de águas do personagem: uma mitologia própria e coesa. Apresentados no decorrer das aventuras do mago, objetos - como o Olho de Agamotto ou o Livro do Vishanti - invocações - Hostes de Hoggoth ou as já citadas Faixas de Cytorak - lugares - a Dimensão Negra ou o Reino do Pesadelo - e as próprias entidades que os habitavam eram elementos que, ao mesmo tempo em que serviam ao desenvolvimento do arco da narrativa, terminava por agregar valor às histórias, criando uma mitologia coesa e bem estruturada que dava uma dimensão de "real" ao universo do feiticeiro, de modo parecido, por exemplo, com o que havia sido feito pelo escritor H.P.Lovecraft (1890-1937) - e amigos -nos seus "mitos de Cthulhu" ou como, posteriormente, será feito por J.R.R.Tolkien (1892-1973) no universo da Terra-Média.
Numa época de grande efervescência cultura, em que a contracultura começava ganhar força, ao mesmo tempo em que o ocidente começava a se abrir para a religiosidade oriental e às conceitos exotéricos como dimensões alternativas e estados alterados de consciência, não é de se admirar que a criação da dupla -seja por sua arte psicodélica, seja pela narrativa - tenha angariado uma quantidade grande de fãs e admiradores, não apenas entre o público alvo, mas também no interior de universidades e dentro do movimento hippie. Para muitos, até, o personagem pode ser considerado como uma das grandes influências para o desenvolvimento desse segmento mais místico/psicodélico que caracterizaram tanto os anos 60 - e tudo isso antes da chegada de autores como Steve Englehart, que levaria o título para novos patamares de "viagens alucinógenas".
Mas mesmo num período marcado por ideias brilhantes e narrativas inovadoras, existe, dentro da fase inicial do Mestre das Artes Místicas, uma narrativa que consegue se destacar, não apenas das histórias anteriores do herói, mas de todos os demais quadrinhos de super heróis feitos até o momento. Essa história, chamada "A Saga de Eternidade", é o motivo do post de hoje.

Tendo início em Março de 1965, nas páginas da edição 130 da supracitada Strange Tales, "A Saga" começa de uma maneira, aparentemente, comum. Na página de abertura da história do Mestre das Artes Místicas, o Barão Mordo, arqui-inimigo jurado do feiticeiro, faz uma aliança com Dormammu, o Senhor da Dimensão Negra. Juntos, planejam não só a destruição do seu inimigo jurado, como também a do seu mentor, o Ancião. Uma vez que se encontra impedido de atacar diretamente a Terra ou o Mestre do Misticismo, Dormammu transfere parte de seus poderes para Mordo que, assim, poderá finalmente destruir seu inimigo mortal. Na luta que se segue, o Ancião é gravemente ferido, forçando o Dr.Estranho a fugir com ele em busca de auxílio, ao mesmo tempo em que Mordo convoca todos os praticantes de magia negra para caçar o mago fugitivo. Acuado, o feiticeiro parte pelo mundo num desesperado jogo de gato e rato, procurando entender o significado do nome sussurrado por seu mentor enfermo. O nome: Eternidade.
E assim tem início "A Saga", que só viria a ver sua conclusão em Julho de 1966, na edição 146 de Strange Tales. E isso, por si só, já é algo digno de nota.
Numa época em que as histórias em quadrinhos tendiam a ser aventuras auto suficientes e auto contidas- estendendo-se, quando muito, em duas ou três partes - "A Saga", quebra por completo esse padrão, se estendendo por 17 edições num total de 187 páginas, aproximadamente.

Mais do que o ineditismo e a ousadia da história, é de se surpreender o quão consistente ela consegue ser. De fato, a "Saga", em sua maior parte, é dominada por um senso de urgência e tensão - oriundo tanto da ameaça de Mordo quanto pelo estado de saúde do Ancião - que vai crescendo a cada capítulo, a medida em que apresenta perseguições, duelos místicos e viagens interdimensionais até o grande clímax da história: o encontro do protagonista com Eternidade, a personificação do universo - e um dos mais incríveis designs elaborados por Ditko. É esse tipo de congruência que levanta, ainda hoje, o debate se se poderia considerar "A Saga de Eternidade" uma das primeiras graphic novels produzidas pela indústria de quadrinhos norte americanas - uma discussão que terá que ficar para uma próxima oportunidade. Mas, mesmo sem considerar esse debate, é inegável a que, por sua própria estrutura, "A Saga" tenha sido uma grande influência para aquilo que, hoje em dia, se tornou o grande mal da indústria: as mega sagas.
Contudo, por mais que mantenha seu "pique" por boa parte de sua extensão, é preciso admitir que "A Saga" sofre um pouco perto do seu final - especificamente nas últimas quatro partes - basicamente por dois motivos. O primeiro motivo se encontra no fato de que, nessas quatro edições, a história começa a dar sinais de que estava se preparando para seguir outros rumos, desenvolvendo-se numa outra linha narrativa quando é interrompida abruptamente pelo duelo final entre Dormammu e Eternidade. Isso, aliado ao fato de que a série ainda não havia se recuperado da "ressaca" do clímax anterior - o confronto entre Estranho, Mordo e o supracitado Dormammu - termina tirando boa parte do impacto e do peso que essa nova - e definitiva - conclusão deveria ter tido.
Nada, no entanto, capaz de realmente tirar o seu mérito.
E, mesmo sendo esse o caso, a arte de Ditko por si só já seria motivo o suficiente para salvar "A Saga".


E, encerrando a "Saga" com chave de ouro, aquele que talvez seja um dos mais incríveis trabalhos de Ditko: o cataclísmico embate entre Dormammu e Eternidade, uma batalha tão grandiosa que abala - e destrói - mundos inteiros numa época em que tais coisas ainda conseguiam ser impactantes. Mais do que "apenas" o encerramento da "Saga", esse espetáculo final de caos e loucura marca também a despedida do próprio Ditko do personagem que ajudara a criar e moldar, um verdadeiro canto do cisne para um arco que poderia também ser considerado um canto do cisne da dupla, numa história que, ainda hoje, consegue se manter incrivelmente relevante e fresca.
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P.S: Para aqueles curiosos para conferir "A Saga de Eternidade", a mesma foi publicada Salvat no ano passado, na terceira edição da sua série dedicada aos Clássicos, sob o título "Dr.Estranho: Uma Terra Sem Nome, Um Tempo Sem Fim".