quarta-feira, 30 de maio de 2018

Resenha: O Incrível Hulk - No Coração do Átomo

Numa entrevista - publicada no Brasil no quarto número da série Mestres Modernos, Walter Simonson fez um comentário bastante interessante sobre o universo das HQs. De acordo com ele, as séries de quadrinhos - e consequentemente seus personagens - possuem um conjunto de temas recorrentes que acabam formando a identidade da série.

Ainda que no caso em questão estivesse falando sobre o Thor, não é preciso correr muito para perceber a verdade por trás dessa afirmação. O Pantera Negra, por exemplo, lida quase sempre com dilemas em torno de sua identidade - seja como rei/herói/cidadão de um país e do mundo - ou com sua relação com seu país - e as frequentes tentativas de golpe de estado que se abatem sobre ele. O Capitão América, por sua vez, vai ter suas crises pautadas por sua relação com o ideal e o real do país cuja bandeira ele adotou. 

E temos o Incrível Hulk.

Ainda que seja mais conhecido como o típico  personagem de filmes de monstro - uma criatura incontrolável de força sobre-humana responsável por trazer o caos e a destruição por onde quer que passe - o Golias Esmeralda possuí também um  rico caráter  emocional e psicológico. Apesar de não ser tão bem conhecido quanto seu caráter físico, é nesse aspecto psicológico que vamos encontrar os grandes temas que identificam o personagem e sua série - e, dentre todos esses temas, encontramos a solidão, talvez um dos temas mais fortes e frequentes ao longo dos quase 60 anos de carreira do personagem. De fato, a solidão é uma constante tanto na vida de Banner quanto do próprio Hulk. No caso do cientista, temos a solidão que vem do seu medo de perder o controle, forçando-o a se separar de seus amigos e interesses amorosos pelo simples fato de sua presença pô-los em perigo. No caso do gigante verde, a solidão de ser sempre perseguido e temido em qualquer lugar que ele vá, jamais encontrando a paz ou uma mão amiga que possa ajudá-lo.

E é sobre solidão a história que vamos discutir hoje.

Assim, eu lhes apresento No Coração do Átomo.





O arco de histórias conhecido como No Coração do Átomo que perpassam os números #140, #148, #156, #202-203, #205-207, #246-248 e são marcados pela presença da personagem Jarella e seu relacionamento com o Hulk. Uma vez que estamos lidando com um número relativamente grande de edições - 11 ao total - vamos fazer uma divisão em três tópicos para facilitar essa Resenha, de um modo parecido com o que fizemos com o volume 7 do Cavaleiro da Lua - e que ainda preciso fazer um final...

Mas, ao contrário do Cavaleiro da Lua, esse vai ser um post único e completo.

Então, basicamente, os tópicos em que podemos dividir a história são:

1) Primeiros encontros do Hulk com Jarella;
2) Reencontro e morte de Jarella;
3) O Funeral;

Feito isso, vamos para a resenha em si.

1) Primeiros encontros:

Esse primeiro trecho do arco de No Coração do Átomo vai englobar as edições #140, #148 e #156. 

Na primeira parte do arco, a edição 140 (Junho de 1971), apresenta a história "A Fera...que Gritou Amor...no Coração do Átomo!",  não apenas uma das histórias mais memoráveis do Golias Esmeralda, como também aquela que vai estabelecer toda a base para o arco. Nesta história, uma continuação da trama iniciada na edição 88 da revista dos Vingadores, vemos o confronto dos Heróis Mais Poderosos da Terra com o alienígena Psyklops. No meio da luta, o Hulk termina sendo transportado para o planeta subatômico de Jarella, onde se alia aos moradores do reino de K´ai na sua luta contra as criaturas conhecidas como Warthos. Como resultado dessa luta, o gigante verde é aclamado pelo povo de K´ai como seu novo herói, gozando, pela primeira vez em sua vida, do respeito e admiração do povo. Mais do que isso, é em K´ai que conhece e se apaixona por Jarella, a imperatriz do lugar, e que vai se tornar uma presença importante em suas histórias. Assim, pela primeira vez na vida, o personagem parece ter encontrado tudo aquilo que sempre quis. Não só é finalmente aceito e respeitado, mas também amado, tendo, enfim, um lugar para chamar de lar. 

Desnecessário dizer que essa felicidade dura pouco, de modo que, ao fim da história, o Hulk é devolvido ao seu mundo, levando consigo apenas a memória de um breve e fugaz instante de felicidade.

Apesar de curta, essa estranha história do Hulk talvez seja uma das mais importantes em toda a história do personagem, sendo explorada e retrabalhada por muitos e muitos anos - o arco Planeta Hulk, por exemplo, vai se inspirar bastante nessa edição - mas, mais especificamente, existem nela pelo menos dois elementos que serão de extrema importância.


O primeiro desses elementos, é a personagem Jarella, interesse romântico do Hulk cuja influência seguirá o personagem por muitos e muitos anos porvir - e neste arco em particular. O segundo se encontra na história em si. Apesar de ser uma história bem rápida e direta "A Fera...que Gritou Amor...no Coração do Átomo!" possuí uma grande força em sua narrativa, em especial por conta de seu  encerramento num clímax forte, amargo e melancólico ao mesmo tempo. Ao dar ao personagem tudo aquilo que ele sempre quis apenas para lhe tirar tudo no último instante, a história termina puxando o Hulk para um universo muito mais próximo ao seu leitor, tornando-o mais simpático ao mesmo. Esse desdobramento vai terminar se tornando  uma espécie de marca registrada para as histórias do herói, marcadas fortemente por esse viés trágico, e, muitas vezes, desolador - um estilo que vai ser muito bem trabalhado por autores como Bill Mantlo, por exemplo. Mais do que isso, esse mesmo desdobramento pode ser, se não uma inauguração de uma nova vertente de narrativa,pelo menos um dos pontos mais fortes na apresentação de uma nova forma de se trabalhar o personagem, trazendo um equilíbrio entre a dupla Hulk/Banner, e transformando o Golias Esmeralda numa parte tão rica e importante das histórias quanto a sua contra-parte.

Assim sendo, não é uma grande surpresa que "A Fera...que Gritou Amor...no Coração do Átomo!" seja uma história tão importante para o personagem.

As edições subsequentes, #148 (Fevereiro de 1972) e #156 (Outubro de 1972) são as primeiras a trazerem de volta a personagem de Jarella e seu mundo - o que, a julgar pela proximidade de sua estréia, podem ser uma marca da popularidade da personagem. Importantes mais por aprofundar a relação entre Hulk/Banner e a imperatriz de K´ai  do que por si mesmas, essas duas edições não chegam a ser ruins, mas também não tem o peso das histórias que as seguirão. Ainda assim, é interessante notar algumas escolhas tomadas pela equipe criativa - Archie Goodwin nos roteiros, Herb Trimpe na arte - nessas duas histórias. Na edição #148, por exemplo, temos uma espécie de "ensaio" para o que seria a morte de Jarella - ideia que só seria efetivamente utilizada cerca de quatro anos depois - enquanto que a edição #156 reencena, de certa forma, a edição #140. Ainda que traga consigo suas alterações, o final da história é uma referência da edição anterior e, mesmo que possua sua carga de tristeza e drama, uma vez que se encontra num encadernado - sem a separação do tempo que essas duas edições possuíram originalmente - não há tempo para que o efeito de "A Fera que Gritou Amor no Coração do Átomo" se perca por completo, o que termina por gerar uma diminuição no impacto geral da história.

2) Reencontro e Morte:

Esse trecho engloba a maior parte do nosso arco de histórias, indo das edições #202-203 a #205-207 e talvez seja um dos momentos mais tocantes de toda a série.
Sob o roteiro de Len Wein, e com a arte daquele que talvez tenha sido o artista definitivo do Hulk, Sal Buscema, essas histórias possuem uma ligação mais estreita entre si, sendo um arco dentro do arco maior.
Nas edições 202 e 203, acompanhamos a volta do Golias Esmeralda ao planeta de Jarella. Apesar de parecer uma reprise dos eventos anteriores, os eventos dessas duas histórias serão os responsáveis por trazer a imperatriz de  K´ai de volta para a Terra ao lado do Hulk, preparando terreno para a sua morte.

A morte de Jarella, contudo, só ocorre na edição 205, na história "Não me Abandone!" (Novembro de 1976), sendo suas consequências sentidas ao longo das duas edições seguintes. Apanhada no meio de uma luta entre o Hulk e o Metaloide - um robô gigante super-poderoso, a imperatriz se sacrifica para salvar a vida de uma criança, sendo soterrada no desabamento de um prédio. Enfurecido pela morte de sua amada, o gigante verde destrói o robô e parte em busca de ajuda, primeiro da ciência, com os cientistas e aliados da Base Gama, e, quando eles falham, apela para a magia, com seu velho conhecido, o Dr.Estranho. A busca do Hulk pelo Mestre das Artes Místicas é o foco da edição 206, e o encontro dos dois - e dos Defensores - o da edição seguinte. Também na edição 207, vemos o fim definitivo de Jarella, ao mesmo tempo que vemos um Hulk completamente arrasado pela notícia de sua morte.

Dentre todas as histórias presentes nesse arco, talvez seja "Não me abandone!" aquela que realmente dá seguimento à "A Fera que Gritou Amor no Coração do Átomo", não só em termos de tom, mas também por ser  a primeira narrativa a não ser apenas mais uma cópia de sua premissa, efetivamente inovando em sua história.

Uma vez que mantém a mesma equipe criativa, as histórias deste trecho do arco são bem concisas entre si. A sequência da morte de Jarella, e todos os efeitos que ela gera sobre o Hulk, é, como dito acima, um dos momentos mais tocantes de toda essa história. Mesmo não sendo uma ideia original para a época - afinal, Gwen Stacy havia morrido 3 anos antes, e, bem antes dela,Janice Cord - a morte da namorada do herói ainda possuía uma dose de novidade e ousadia, e o modo como Len Wein preparou a história, primeiro lançando mão daquilo que poderíamos chamar de uma aventura pura e simples, para depois pegar o leitor de surpresa com a morte da personagem foi algo realmente bem elaborado - ainda que se possa dizer que a morte da personagem não devesse ter sido tão permanente como foi, como podemos ver nesta coluna do site CBR. Mais do que isso, é a própria personalidade do Hulk quem mais trabalha em favor da história. Uma vez que o personagem tem a mentalidade de uma criança, o impacto de um evento tão trágico como esse é sentindo com uma força muito mais seca e direta, potencializando os efeitos da narrativa e seus desdobramentos. 

À parte esse eixo principal, essa sequência de histórias também possuí um rico desenvolvimento de seus núcleos secundários, seja na história do vilão da edição 205 - um sujeito anônimo obcecado por reconhecimento e fama mas cujo único prêmio é a morte e um novo e definitivo anonimato - seja nos retratos das vidas do elenco de apoio da série, todos eles marcados de alguma forma pela influência de Banner ou do próprio Hulk. 

Na minha opinião, é neste trecho que se encontra o verdadeiro ápice de No Coração do Átomo, tanto pelo nivelamento na qualidade das histórias, como pelo equilíbrio alcançando entre ação/emoção, ao mesmo tempo que conseguem trabalhar bem tanto suas histórias principais como seus eixos secundários.

3) O Funeral

Fechando o arco de histórias, temos as edições que vão do número 246 a 248. Na primeira história, "O Herói e o Hulk", vemos o Hulk invadindo a Base Gama me busca do corpo de Jarella, procurando fazer valer sua promessa de levá-la de volta ao seu mundo natal. No processo, se depara com o Capitão Marvel que termina lhe ajudando a voltar para o mundo subatômico. A história seguinte, "O Mundo de Jarella", narra a volta do Golias de Esmeralda para o dito mundo e seu reencontro com seus habitantes. Sendo aqui também o começo da aventura que vai terminar com o sepultamento de Jarella, na edição seguinte, em "Quão Verdejante é o Meu Jardim!"

Assim como na segunda parte do arco, a equipe criativa - agora com Bill Mantlo no roteiro, mas continuando com Sal Buscema no comando da arte - é a mesma durante toda a história, o que mais uma vez mantém a consistência da mesma.

Não alcançando o mesmo tipo de pico emocional que o segmento anterior, o funeral de Jarella trabalha sobre uma luz diferente e mais contida, mas nem por isso menos efetiva. Sendo o encerramento de um período na vida do Hulk e, ao mesmo tempo da carreira de uma personagem, há ao longo de toda a história um peso e uma tristeza que perdura por toda a sua extensão, refletindo-se com grande força em momentos como o reencontro do Golias Esmeralda com o corpo de sua amada, e no último adeus entre os dois.


Mais do que isso, há ainda uma ideia trabalhada nessas três histórias que atua como um reforço de tom, e que se encontra na transformação do cenário em um agente da narrativa. Emulando as emoções do próprio personagem, os ambientes desse segmento seguem uma lógica interessante em pelo menos dois momentos: no encontro de Hulk com Jarella, e na volta do herói ao mundo da imperatriz de K´ai. O primeiro momento ocorre nas ruínas da Base Gama, enquanto que, no segundo, o herói se vê as voltas com um mundo morto e desolado. Ambos os cenários se encontram no seu estado atual por conta das ações do protagonista e, em comum, simbolizam o fim definitivo daquele período da vida da personagem, a Base Gama representando o fim da relação entre o Golias Esmeralda e sua amada, e o mundo subatômico como o fim de um dos poucos períodos onde o personagem conseguiu encontrar paz e felicidade - o que daria ao enterro de Jarella o sentido de um duplo encerramento para a vida do personagem, um período que deixara para trás apenas uma lembrança, marca pela flor que nasce do túmulo de sua amada.

Considerações Finais

Chegando ao fim da resenha de O Incrível Hulk - No Coração do Átomo, acredito que não me resta mais ao que falar. No geral, esta é uma história que conseguiu envelhecer muito bem, ainda que seja possível ver alguns sinais de sua idade aqui e ali. Sua coesão, para um arco de histórias que durou 11 edições ao longo de 9 anos e cerca de quatro equipes criativas. Existem, é verdade, algumas partes dessa história que são consideravelmente mais fracas do que as demais, servindo mais para manter Jarella e seu mundo viva na mente do leitor da época do que por uma razão puramente narrativa - uma consequência lógica do fato de estarmos trabalhando uma série de quadrinhos de caráter mensal e que se estendeu ao longo de anos e mais anos de publicação e outras histórias. Ainda assim, mesmo nessas histórias podem ser encontradas algo de interessante -seja o germe de uma ideia que será explorada depois, seja, simplesmente, uma história bem contada com começo, meio e fim.

No tocante da arte, temos uma variedade de traços bem díspares entre si. Começando pelo trabalho de Herb Trimpe no primeiro segmento e passando logo para Sal Buscema nos outros dois. Particularmente, nunca fui um fã do trabalho de nenhum dos dois, apesar de serem dois artistas de extrema importância para a história do personagem, de modo que talvez não seja a pessoa mais indicada para fazer uma crítica nesse tocante - ainda que precise reconhecer que é interessante ver como Sal Buscema consegue dar dimensão a história que conta, dando ao Hulk muito de sua força e poder mas, ao mesmo tempo, conseguindo dar ao personagem um lado mais simpático e delicado. Mas, se a arte em si for um problema para o leitor, basta saber que a história em si vale a pena o esforço.

Finalmente, não custa nada martelar mais uma vez algo que já foi dito repetidas vezes no gigantesco texto acima: No Coração do Átomo termina sendo uma das histórias mais importantes do personagem justamente por ser o começo de uma nova vertente de trabalho com o Hulk, dando ao gigante verde uma forte carga emocional e psicológica, algo que futuros roteiristas vão manter e continuar utilizando até os dias de hoje - algo que o torna uma leitura válida tanto para fãs do personagem, quanto curiosos em geral.



Nota: Para os curiosos, o arco foi publicado a pouco tempo pela Salvat, como o vigésimo segundo número de sua linha de clássicos.