sábado, 20 de outubro de 2018

Resenha Etrigan de Jack Kirby

 De todos os personagens criados por Jack Kirby durante sua segunda passagem pela DC Comics, talvez Etrigan, o Demônio seja o mais singular de todos, uma vez que representa um desvio notável na carreira do quadrinista, mais conhecido por seu trabalho nos gêneros de super-heróis e das grandes epopeias cósmicas. Não que o Demônio fuja completamente dos padrões de super-herói, mas, ao contrário dos outros heróis da carreira de Kirby, é o que vai mais se aproxima do gênero do terror - um gênero do qual o artista não era um grande apreciador.

 Criado a pedido do então editor da DC Comics, Carmine Infantino, para aproveitar o revival das histórias de terror ocorrido no começo dos anos 1970,
a premissa básica em torno do personagem gira em torno da descoberta feita pelo demonologista Jason Blood de que sua alma, e existência, é compartilhada com o demônio Etrigan. Invocado pelo mago Merlin para durante a batalha final da lendária Camelot, o Demônio  passa a ser seu agente na Terra, protegendo os segredos do mago e enfrentando toda sorte de monstros, demônios e entidades malignas que ameaçam o mundo dos homens.

Como boa parte das séries de Kirby, Etrigan  teve uma vida curta, durando 16 edições que se estenderam de Janeiro de 1972  a Setembro de 1974. Mesmo assim, dentre todos os criados para a DC, a exceção sendo, logicamente, o elenco do Quarto Mundo ,o Demônio foi aquele que melhor se adaptou ao Universo DC, aparecendo esporadicamente em alguns títulos até ser sua carreira ser "ressuscitada" por Alan Moore em sua passagem pelo Monstro do Pântano

Essa, porém, é uma história para um outro post. Hoje vamos nos concentrar na primeira série do personagem. E então, sem mais delongas, aqui vamos nós.







Num primeiro momento, é preciso dizer que Etrigan não é uma série de terror convencional. Apesar de se valer de vários dos elementos do gênero, sejam seus cenários, seja a miríade de monstros que populam suas páginas, a abordagem escolhida por Kirby para este trabalho vai de encontro àquela que é um dos pilares básicos do terror/horror: a sensação de impotência.

Em outras palavras, enquanto que uma típica história de terror trabalha primordialmente com a ideia de que o protagonista, ou vítima se encontra numa tal posição que o confronto com o elemento de horror - seja ele de ordem natural ou sobrenatural - se apresenta como virtualmente impossível, ou que, quando possível, apresenta pouca ou nenhuma perspectiva de vitória - isso, quando existe de fato uma vitória, as histórias do Demônio vão diretamente na contramão dessa ideia.

Nelas, não existe horror tão grandioso, ou ameaça tão prodigiosa, que não possa ser enfrentado pelo protagonista ou pelo sempre disposto elenco de apoio. Mesmo que possam vacilar ou fraquejar diante do perigo, isso não os impede de, futurametne, partir para o confronto. Neste microcosmos de 16 edições, a luta é sempre possível, e a vitória,  sempre uma possibilidade. Como consequência direta, a ação é a verdadeira mola mestra das histórias, aproximando as aventuras de Etrigan mais do universo dos super-heróis do que do terror propriamente dito - talvez, para fins de uma classificação, essas histórias se encontrassem em algum ponto dos reinos da dark fantasy, mas esse não é o ponto desse texto.

Isso não quer dizer, porém, que esse princípio do terror seja completamente descartado por Kirby. De fato, em pelo menos uma história - Uivador - essa dinâmica se apresenta, ainda que recaindo sobre o antagonista, mas falaremos disso um pouco mais adiante. 



Em termos de personagens, Kirby conseguiu criar uma galeria fascinante e pictórica. Fora o já mencionado Jason Blood e sua contra parte demoníaca, temos, como parte do elenco fixo da série o publicitário Harry Matthews,  o delegado da ONU Randu Singh, e a presença ocasional de Glenda Mark. De um modo geral, cada um desses personagens funciona de uma maneira arquetípica, Harry é o explosivo e fiel companheiro/humano normal da história - o ponto através do qual o medo e o terror geral se apresenta - Randu é o sério auxiliar sobrenatural - resvalando no estereótipo místico hindiando - e Glenda, apesar da sua curta participação, o par romântico. 

Unindo essa pequena tríade, temos um senso de companheirismo e fidelidade para com seu amigo que é realmente único, não havendo monstro, feiticeiro ou demônio capaz de impedir que o trio venha em socorro de seu amigo. De fato, tamanha é a força e a importância da amizade no decorrer da série que poderíamos muito bem dizer que ela é um de seus temas centrais, se tornando também uma das grandes marcas do Etrigan de Kirby.


Quanto a Jason Blood e o Demônio, a situação é um pouco mais complicada. Ainda que apresentem uma série de características determinadas no tocante a sua personalidade, a dinâmica entre os dois sofre de altos e baixos. De fato, ainda que muitas histórias apresentem a tensão da vida dupla dos personagens, apenas em algumas esse elemento é realmente trabalhado, seja  mostrando a angústia do protagonista por ter uma vida que não é só sua, seja suas tentativas de se livrar de sua contraparte demoníaca, enquanto que, em outras, isso sequer é comentado.

 Mais ainda, existe uma certa inconstância no modo como o próprio Etrigan é retratado. Mesmo mantendo, em qualquer encarnação, o prazer pela batalha e uma certa indiferença com relação ao próximos como  características fixas do personagem, o comportamento do personagem varia bastante de história para história. Em alguns momentos, o Demônio é o fiel servo de Merlin disposto a enfrentar o mal que assola o mundo. Noutras, ele é uma criatura tão perversa e cruel quanto os monstros que enfrenta, odiando Merlin e todo aquele que exerce algum controle sobre si. No geral, existe uma predominância para o primeiro aspecto, aproximando Etrigan do modelo de super-herói - ou de anti-herói, dependo do caso¹

Saindo do elenco de apoio, entramos na sessão dos vilões. Trabalhando em cima do conceito de "monstro da semana"², a série não apresenta um elenco fixo de vilões, a exceção sendo Morgana Le Fey e Klarion, o Menino Bruxo. No geral, esses personagens não se afastam muito do monstro/culto do mal genérico presente nesse tipo de HQ. Existem exceções? Sim, pelo menos 3 arcos  - números #6, #8-10, #11-13 - apresentam vilões que, mesmo sendo derivados de outros clichês, ou mesmo de outros personagens, conseguem ser apresentados de uma forma interessante no decorrer da história, trazendo alguma caracterísitca nova ou única aos seus arcos. Mas já vamos chegar nisso.

Sobre Morgana Le Fey e Klarion, a dinâmica estabelecida por eles é bem díspar. Por um lado, temos Morgana, arqui-inimiga de Merlin, representa o grande mal da série, sendo vital não apenas para o estabelecimento da mitologia do personagem, como também servindo, sendo a primeira vilã a ser apresentada em toda a série, como uma base de apresentação para os demais vilãos que se seguirão. Quanto a Klarion, temos nele a maior quebra no padrão das histórias. Ainda que seja um vilão, e um bruxo também, suas ações não são puramente más ou malignas, se aproximando mais da birra de um pirralho malcriado (o famoso "menino buchudo") do que da vilania propriamente dita. 

Como consequência, suas aparições são quase sempre cheias de uma certa dose de humor, algo que, estranhamente, não destoa da série como um todo - antes servindo como um respiro para a série, quebrando a "tensão" das suas histórias anteriores, e dando tempo do leitor se preparar para as histórias que virão.
  E agora, falemos sobre as histórias em si.


Sendo uma série curta e, pior, nova (pelo menos na época) seria de se imaginar que Etrigan sofresse com dois tipos de problemas: a falta de identidade - tom, construção do elenco, premissas - e problemas de desenvolvimento. Isso, contudo, não ocorre aqui.

Desde o primeiro número, Kirby demonstra ter pleno domínio e consciência daquilo que será a série - estabelecendo não só o universo do personagem, mas também aquele que será o tom geral da coisa, a mistura de terror centrado em ação/aventura. Isso, por si só, já é algo impressionante, ainda mais considerando que muitas séries de quadrinhos demoram um certo tempo para encontrar a sua identidade - como, por exemplo, acontece com A Tumba do Drácula , uma série surgida no mesmo período que o Demônio - e que  Etrigan era um personagem recém-criado.

Já no quesito desenvolvimento, temos um misto de prós e contras. Por um lado, Kirby conseguiu desenvolver bem seu universo, adicionando ideias e conceitos novos, e interesssantes, porém congruentes - como as vidas passadas de Jason Blood e as aventuras pregressas de sua contraparte demoníaca - e maturando a série de acordo com seu avançar. De fato, há uma diferença bem interessante entre as primeiras histórias e as últimas, talvez por conta da "familiarização" do artista com sua cria, sendo perceptível até mesmo uma maior seriedade nas aventuras do Demônio a medida em que a série vai avançando.

Por outro lado, temos um elemento  que causa uma certa estranheza pelo modo como é apresentado: a Pedra Filosofal.

Surgindo como um elemento de relativa importância na edição número 8, a Pedra passa a ter funções e importância diferentes com o decorrer da série, sendo, finalmente, o objeto de desejo de Morgana Le Fey em sua última aparição. O verdadeiro problema aqui não está tanto na ideia em si, mas na sua execução. Uma vez que não se pode escrever de forma retroativa, a importância da Pedra para Morgana na edição 16 parece estranha uma vez que, em nenhuma de suas aparições anteriores, ela menciona, ou demonstra qualquer tipo de interesse na mesma, sendo esse desejo mais uma ferramenta para produzir a história do que realmente uma evolução natural da narrativa.

Fora a Pedra, temos também a questão da dinâmica entre Jason e seu Demônio, e o comportamento do próprio Demônio, já abordados acima, que também se somam aos problemas da série.

No mais, as 16 edições da série apresentam uma variação interessante de histórias. Mesmo que se prendendo, na maior parte das vezes, ao modelo de "monstro da semana", Kirby consegue dar às suas histórias um ar único e inovador, mesmo quando se baseiam claramente em ideias e conceitos já bem conhecidos. Mais do que isso, a criatividade do artista, seja no quesito textual, seja no quesito visual, transformam as histórias em experiências divertidas e únicas, por mais que possam apresentar temas e ideias já batidas.

Existem, porém, 3 histórias que eu acredito ser o ponto alto da série. São elas, o Uivador (The Demon #6), e os arcos do Fantasma dos Esgotos (The Demon #8-10) e do Barão Von Terrivelstein (The Demon #9-13), coincidentemente todas elas baseadas em algum elemento já bem estabelecido na cultura popular.


O Uivador narra a história da volta de Jason Blood para os EUA depois de um embate do Demônio na Transilvânia. Lá, ele encontra o Uivador, um monstro que aterroriza o vilarejo local e que, pouco depois, se revela ser o arqueólogo Eric Shiller, amaldiçoado por um antigo espírito libertado durante uma de suas expedições. Desesperado, ele pede a ajuda de Jason para se livrar do monstro com quem tem que dividir sua existência. Reflexo da própria situação do protagonista³, essa história é a primeira a apresentar um tom de tragedia, apresentando um final triste e até desalentador. Dentre todas, é também a que mais se aproxima do que seria uma história de terror propriamente dita.


Os outros dois arcos, trazem em si duas grandes referências. O primeiro, é uma história "inspirada" no Fantasma da Ópera, na qual um ator de rosto arruinado passa a viver nos esgotos e, cometendo uma série de roubos, em busca da bruxa responsável por sua ruína. No segundo, o clássico caso do cientista louco, melhor encarnado pelo Dr. Frankenstein

O que torna essas histórias realmente interessantes, porém, é o que elas trazem em si. No arco do Fantasma, vemos talvez a história mais séria de Etrigan que, apesar de começar como um caso de herói vs. vilão, se desenvolve para um conto desesperador de dor e loucura em que um busca sua própria alma. Mais do que elevar o padrão de toda a série, essa história termina servindo como uma espécie de base para o que serão as histórias futuras do Demônio, na qual o personagem atua tanto como investigador quanto agente de justiça/destruição. Ao mesmo tempo, essa é a única história, fora a do Uivador na qual conseguimos ter uma dimensão do trágico na existência humana, ainda que não seja tão desalentadora quanto a primeira.

Já no arco do Dr.Terrivelstein, mais próxima do padrão da série, temos aqui a apresentação de um tema bastante querido por Kirby, a ideia de um embate - e também fusão - de ciência e magia. Já apresentando neste trabalho, e também em outros, como no Thor da Marvel, a ideia da coexistência entre magia e ciência é bastante recorrente na obra do artista - outro seria o conceito dos Antigos Astronautas. Ainda que restrito ao contexto desse arco, é interessante ver como essa mistura consegue dar vida nova a um conceito que já era bastante corriqueiro dentro do gênero.
 

Finalmente, resta apenas falar da arte da série em si.

Dono de uma imaginação e criatividade ímpares, além de um domínio de narrativa e senso de ação, Kirby encontra em Etrigan mais uma série em que pode esbanjar seus talentos. Assim, a ação é privilegiada ao máximo, em cenas de combate dinâmicas e extremamente fluídas que parecem explodir de vida diante dos olhos do leitor - algo bastante perceptível na edição 1, onde a queda de Camelot tem o escopo épico que deveria ter - e que, dão ênfase a natureza e brutalidade do Demônio como personagem. Da mesma forma, seu traço dá à magia um novo escopo, transformando os feitiços, rituais e preparos num verdadeiro espetáculo visual tão digno de ser apreciado quanto a ação.




Porém, se existe um ponto em que a arte de Kirby realmente se sobressaí, é na concepção visual da série. Os seus monstros são criaturas estranhas e grotescas; os demais personagens, donos de identidades visuais que, por vezes incrivelmente simples - como a mexa de cabelo branco em meio aos cabelos ruivos de Jason Blood, por exemplo - ainda assim conseguem ser incrivelmente efetivas, demarcando bem cada personagem. Quando segue pelo caminho oposto, o resultado também é formidável, como é o caso da primeira versão de Morgana Le Fey - uma armadura belíssima que lembra em muito o trabalho do artista no Thor da Marvel Comics.




 Quanto aos cenários, assim como nas cenas de ação, o traço de Kirby dá aqui a sua graça, dando peso e imponência às mais diversas locações. Contudo,é justamente nas ocasiões em que sua imaginação corre solta, como  na tumba de Merlin, ou na fortaleza de um culto estranho, que temos os resultados mais fascinantes. Nessas locações, vemos todo o esmero da imaginação do artista, que consegue criar ambientes únicos e dotados de uma estranheza quase onírica.





 
Por esses motivos, não é exagero dizer que Etrigan é mais uma série que faz jus ao legado do grande artista, mesmo sendo um  desvio tão grande do gênero padrão de Kirby. Unindo uma visão particular do gênero aos seus pontos fortes como artistas e roteirista, a série, apesar de curta, consegue ser um marco consistente e interessante, apresentando histórias originais e divertidas capazes de agradar tanto ao público voltado para o gênero de super-heróis, como aquele mais disperso de leitores de fantasia no geral.

 Notas:

1 - Quanto a questão da fala rimada, é interessante notar que essa é uma caracterísitca tardia do personagem - sendo introduzida pela primeira vez por Len Wein em DC Comics Presents #86 (1984). Na verdade, ao longo de toda a série, apenas uma vez Etrigan aparece falando de maneira rimada - sem contar o poema de invocação. Para mais informações sobre o assunto, recomendo este artigo de Brian Cronin, do CBR, que traça uma linha do tempo da fala do Demônio.

2 - Basicamente, a denominação "monstro da semana" gira em torno da ideia de uma história que gira em torno de um monstro que, uma vez derrotado ou vencido, nunca mais aparecerá de novo, sendo, no geral, histórias fechadas e autocontidas. Para mais informações, ver essa página do site TV Tropes.

3 - Que, por sua vez, reflete a situação do Dr.Bruce Banner e seu alter ego Hulk, que por sua vez reflete o caso do Dr.Jekyll e Mr.Hyde e, por fim, mas não menos importante, a do mito do Lobisomen.

4 -  A título de curiosidade: A premissa da edição 16, mais especificamente, o uso do sinete de Morgana, serviu de base para o episódio "The Devil Within", de Batman The Animated Series.

5 - Recentemente, a Panini lançou a série completa em dois encadernados -  Lendas do Universo DC - Etrigan Volume 1 e 2. Fora alguns erros de revisão, são opções interessantes para leitores interessados em ver o material.

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